Depois de Bezerra da Silva, o morro carioca nunca mais foi idílico.
No início do século XX, batidas policiais censuravam com violência as primeiras rodas de samba. Mas, apesar de viver um dia a dia rude, a maior parte dos sambistas não considerava que a música era plataforma para denúncia social. Segundo a crônica urbana romantizada do samba, no morro carioca não havia tristeza e ninguém sentia dissabor.
O panorama mudou, os sambistas também. Nascido no Recife, Bezerra da Silva veio para o Rio de Janeiro fugindo da miséria. Morou na rua e, no fim dos anos 1940, viveu a realidade da favela do Cantagalo. Ele mesmo contou que se dedicou à música por medo da fome. Iniciou sua carreira acompanhando artistas de renome, nos anos 1950, e aos poucos foi conquistando seu espaço, cantando a vida dura do favelado com picardia e malandragem.
Bezerra foi um grande vendedor de discos, mas demorou a ser reconhecido como sambista. Só depois de décadas de uma carreira de sucesso é que conseguiu tocar em uma casa de espetáculos de renome — o Canecão, em 1996. A explicação talvez esteja em uma frase dita pelo próprio: “Canto a realidade de um povo faminto e marginalizado”.
Hoje, a vida na favela continua dura. Há, porém, mais vozes cantando essas dores — muitas delas podem ser vistas e ouvidas na Festa Literária das Periferias (Flup). Em 2017, a Flup reuniu jovens talentos da literatura para homenagear o malandro Bezerra, criando contos breves inspirados em sambas gravados por ele. Vinte e cinco desses contos foram selecionados para compor este livro.
Com esta publicação, a Fundação Nacional de Artes (Funarte) reafirma a importância de Bezerra da Silva para a história da música brasileira e deixa registrada a homenagem que a periferia de 2018 prestou ao poeta das desventuras da favela.